29 de abr. de 2008

Canção dos Homens

Que quando chegar do trabalho
ela largue por um instante o que estiver fazendo
- filho, panela ou computador -
e venha me dar um beijo como os de antigamente.

Que quando nos sentarmos à mesa para jantar
ela não desfie a ladainha dos seus dissabores domésticos.

E se for uma profissional, trabalhar fora,
que divida comigo o tempo de comentarmos nosso dia.

Que se estiver cansado demais para fazer amor,
ela não ironize nem diga que "até que durou muito"
o meu desejo ou potência.

Que quando quero fazer amor
ela não se recuse demasiadas vezes,
nem fique impaciente ou rígida,
mas cálida como foi anos atrás.

Que não tire nosso bebê dos meus braços
dizendo que homem não tem jeito pra isso,
ou que não sei segurar a cabecinha dele,
mas me ensine docemente se eu não souber.

Que ela nunca se interponha entre mim e as crianças,
mas sirva de ponte entre nós
quando me distancio ou me distraio demais.

Que ela não me humilhe
porque estou ficando calvo ou barrigudo,
nem comente nossas intimidades com as amigas,
como tantas mulheres fazem.

Que quando conto uma piada para ela
ou na frente de outros,
ela não faça um gesto de enfado dizendo
"Essa você já me contou umas mil vezes".

Que ela consiga perceber
quando estou preocupado com trabalho,
e seja calmamente carinhosa,
sem me pressionar para relatar tudo,
nem suspeitar de que já não gosto dela.

Que quando precisar ficar um pouco quieto
ela não insista o tempo todo
para para que eu fale ou a escute,
como se silêncio fosse falta de amor.

Que quando estou com pouco dinheiro
ela não me acuse de ter desperdiçado
com bobagens em lugar de prover minha família.

Que quando eu saio para o trabalho de manhã
ela se despeça com alegria,
sabendo que mesmo de longe
eu continuo pensando nela.

Que quando estou trabalhando
ela não telefone a toda hora
para cobrar alguma coisa que esqueci
de fazer ou não tive tempo.

Que não se insinue com minha secretária ou colega
para descobrir se tenho amante.

Que com ela eu também
possa ter momentos de fraqueza e de ternura,
me desarmar, me desnudar de alma,
sem medo de ser criticado ou censurado:
que ela seja minha parceira,
não minha dependente nem meu juiz.

Que cuide um pouco de mim como minha mulher,
mas não como se eu fosse uma criança tola
e ela a mãe, a mãe onipotente,
que não me transforme em seu filho.

Que mesmo com o tempo, os trabalhos,
os sofrimentos e o peso do cotidiano,
ela não perca o jeito terno e divertido
que tanto me encantou quando a vi pela primeira vez.

Que eu não sinta que me tornei
desinteressante ou banal para ela,
como se só os filhos e as vizinhas
merecessem sua atenção e alegria.

E que se erro,
falho,
esqueço,
me distancio,
me fecho demais,
ou a machuco consciente ou inconscientemente,

Ela saiba me chamar de volta
com aquela ternura que só nela eu descobri,
e desejei que não se perdesse nunca,
mas me contagiasse e me tornasse mais feliz,
menos solitário, e muito mais humano.

(Lya Luft, em "Pensar é Transgredir")

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