No dia em que trabalhei nas eleições municipais, um fato me comoveu, emocionou, preencheu minha tarde.
Havia findado o tumulto da manhã (a urna da seção em que trabalho quebrou, foi um Deus-nos-acuda) e estávamos meio que apenas esperando a última hora e meia de votação. Corria preguiçosa e calorenta a tarde no salão do Timbuzinho onde, em círculo, se organizavam entre cordas as mesas eleitorais com suas cabines e voluntários enfadados. A velhinha chegou e chamou logo atenção.
Ela estava muito mal vestida. Eu tive aproximadamente 90% de certeza de que ela era moradora de rua – embora este número tenha diminuido com o decorrer da situação - por sua aparência não suja, mas pobre, e pelo saco de plástico transparente de tamanho médio em que carregava muitas coisas, a maior parte dela aparentemente de papel. Não trazia bolsa. Ela não tinha substância na parte frontal do pescoço – é, isso mesmo. Onde deveria haver uma garganta, cordas vocais, tiróide, não havia nada. Um oco recoberto de pele idosa, mas saudável – não havia ferimentos, só umas manchas um pouco escuras e naturais em uma mulher de sua idade.
Cabelo branquinho, branquinho, muita agitação. Gesticulava muito, pois não podia falar. Isto ficava claro por sua movimentação, apontando para a ausente garganta e agitando negativamente os dedos indicadores, a cabeça, o corpo todo, eu diria. Sua ansiedade e postura, o corte de cabelos à altura das orelhas me lembrou muito minha mãe, devo confessar.
Ela aproximou-se, tentando comunicar-se. Não demorou muito, a presidente da mesa entendeu o que ela queria. Descobrir sua seção para poder votar. Dispunha os dedos indicando o 16. Não temos seção 16 aqui, dizíamos. Ela sentou, abriu o saco, buscou uma folha de revista. Pensei: “a mulher é louca”. Desdobrou a folha. Dentro, um papel xerografado. Identidade. Olhei a data de nascimento. 1925. “A senhora não precisa votar”. Eu sou uma estúpida mesmo.
Ela pareceu impaciente. Traduziram para mim, as mais experientes com eleição: “Ela quer votar”, a presidente disse. Procurei na lista, não constava seu nome. “Não, não é aqui. A senhora precisa procurar”. Imbecil, eis o que sou. Estávamos as quatro mesárias em seu torno, tentando entendê-la e ajudá-la, mas não estávamos obtendo sucesso. Não sei se a chamaram ou não, sei que a administradora do prédio apareceu e levou a velhinha. Passei muito tempo olhando-a sentada a cinco metros, ainda agitada, nervosa, até que esqueci dela em meio às atividades finais do dia. Faltava pouco mais de meia hora para as cinco da tarde.
Depois de alguns minutos, revi a camisa cor-de-rosa da administradora gordinha, mas não a velhinha. Chamei. “Ela está ali votando. Sim, eu achei. Procurei em todas as seções, achei seu nome. Ela vota na 6ª seção, o pessoal até lembrou dela, sempre aparece para votar”. Espiei, ela estava lá mesmo.
Ai, ai, ai, como sou burra. 16, 6, fácil confundir. Eu confundiria.
Depois de mais um pouco a reencontrei andando meio desorientada, mas o fato é que ela fizera o que pretendera, votara. Eu vira.
Finda a eleição, boletins gerados, urnas e balangandans encaixotados, alguma calma se estabeleceu no ambiente, a camisa cor-de-rosa se aproximou, começou a contar.
Quando a velhinha sentou-se naquela cadeira, resolveram fazer o que chegamos a sugerir, mandá-la escrever o que queria. Aí ela escreveu.
“Não sou louca. Voto aqui a muitos anos. Sou professora aposentada”.
Parabéns aos mestres que sustentam em meio a tantas desenganos a difícil situação da educação neste país.
Parabéns mais ainda às professoras e professores de escolas públicas de ensino pré-escolar, fundamental e médio, sem querer desmerecer os demais, por que elas e eles definitivamente são sofridos e batalhadores.
Parabéns a mamãe, que é professora, brevemente aposentada, e um dos maiores exemplos de educadora amorosa que conheci e que muitos conheceram.
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